"No primeiro de abril de 64 fui assistir a uma assembleia no Sindicato dos Ferroviários em Fortaleza. Saí dali e passei pela Praça José de Alencar. A praça foi cercada. Eu e vários do povo fomos presos na então Faculdade de Odontologia. Ficamos ali algumas horas. No dia seguinte ao golpe, Fortaleza parecia um cemitério. A cidade ficou vazia. A movimentação era só no 23º BC, Batalhão de Caçadores, que era para onde iam os que estavam sendo presos”.
Memórias de José Genoíno, 77, contadas ao TUTAMÉIA. Militante estudantil, guerrilheiro, preso político torturado pela ditadura, fundador do PT, deputado, nesta entrevista ele fala de sua trajetória, das utopias de sua geração e dos desafios atuais.
“Sou de uma geração foi que bebeu a água, respirou o ar e se alimentou de um dos maiores movimentos que a história da humanidade registra. Foi uma ebulição, uma revolução em todos os terrenos: na cultura, na política, na música. A gente é filho de uma era de revolução”, afirma.
Ele segue:
“Isso produziu uma militância muito engajada. Quando veio a porrada com o AI-5, aquela geração não iria se conter. Era quase natural que ela fosse para o tudo ou nada. E, de certa forma, fomos. Era uma geração muito mais preparada para morrer do que para matar. Era uma geração da utopia, do sonho, do ‘é proibido proibir’, que gostava do risco. Porque ela se libertava de tudo, da família, da formação, dos valores do conservadorismo. Era a quebra de todos os muros’.
‘‘Aquela geração foi violentamente reprimida, morta. Se você pega o álbum de Ibiúna [Congresso estudantil reprimido pela ditadura em 1968], praticamente a metade, já nos anos 70, em 79, tem um xis. É uma geração que foi eliminada. Não é brincadeira para um país”.
Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, gravada em 10 de fevereiro de 2024, Genoíno relata a efervescência cultural nos primeiros anos após o golpe, da criação de um grupo de teatro, dos trabalhos na periferia de Fortaleza. Estudante de filosofia, seu primeiro emprego foi na IBM.
“Eu, como presidente do centro acadêmico, dirigi uma passeata que por acaso passou em frente da IBM. A IBM me viu. Eu tinha falado ao trabalho e estava dirigindo uma passeata. Ela me chamou e disse: ‘Você tem uma escolha. Para ser executivo, você vai para o Rio fazer um curso de computador barra 360. Assim, vai ser complicado’. Eu disse que ia continuar no movimento estudantil. Fui demitido por justa causa. Aí, entrei na militância para valer”, conta.
Fala Genoíno:
“Vivi no limite todas as minhas escolhas. Quando fui para o movimento estudantil, quando fui para a clandestinidade, quando fui para a guerrilha, quando sai da guerrilha e fiquei cinco anos preso, quando participei da fundação do PT, quando fui para o parlamento, quando tive que me defrontar com as ilusões institucionalistas do parlamento, quando enfrentei o mensalão. Enfrentei a tortura por dois ângulos: a tortura física, que mexe na alma, e a tortura na alma, que mexe no físico”.
“Sempre vivi intensamente, não vivi pela metade. Tive lições muito fortes. A principal é que, no sistema capitalista, quando a gente baixa a cabeça, morre. E quando a gente luta, a gente tem chance de ser vitorioso ou de viver com dignidade. Vale a pena a luta. A luta tem uma mística, tem um sentido de sublimação, de eternidade. A gente deixa de ser uma coisa para ser sujeito. A gente deixa de ser número. A gente passa a ser agente transformador. Vale a pena sonhar. Sem sonho, a vida fica muito sem graça”.
O depoimento integra uma série de entrevistas sobre o golpe militar de 1964, que está completando sessenta anos. Com o mote “O que eu vi no dia do golpe”, TUTAMÉIA publica neste mês de março mais de duas dezenas de vídeos com personagens que vivenciaram aquele momento, como Almino Affonso, João Vicente Goulart, Anita Prestes, Frei Betto, Roberto Requião, Djalma Bom, Luiz Felipe de Alencastro, Ladislau Dowbor, José Genoíno, Roberto Amaral, Guilherme Estrella, Sérgio Ferro e Rose Nogueira.
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